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Geografia incoerente
Europe Europe, 2014
Daniel Barroca


Subimos as montanhas com o motor na máxima rotação. A estrada ondula e volteia, o fumo dos carros é insuportável. O ar é bastante poluído. Pelo caminho, encontram-se carros avariados e outros absurdamente em contramão. A passagem pelo topo é breve, parece inabitado. Não há tempo para se perceber como é que funciona em relação ao céu, que é o que de mais fascinante existe no topo das montanhas que são lugares onde se sente a pressão atmosférica a comprimir a terra, ou a abrir um vácuo de escape, que é um túnel de espaço no espaço que permite ao que está trancado no cérebro expandir-se de modo incomensurável no infinito em direção a um nada que é tudo e por isso é nada. Não vale a pena repisar a evidência do tudo que é nada e vice-versa. A experiência física da montanha implica perder o ar, implica entrar num território onde o corpo fica comprimido e a caixa torácica perde espaço interior.
Perder esse espaço engendra uma respiração curta, que coloca o corpo numa vertigem subtil. É um limite interior para o qual a melhor imagem exterior será mesmo a de uma encosta escarpada da qual podemos cair a pique e desaparecer. A velocidade dos pensamentos é a mesma do movimento da carrinha. Progredimos pela estrada fora ao longo de um percurso focado numa direção que atravessa uma paisagem de coisas mais ou menos dispersas, mais ou menos coesas. Ao iniciar a descida, os vales que os montes configuram com os seus diferentes matizes de castanho e as suas diferenças de escala provocam-me uma subtil atração pela vertigem à medida que faço deslizar o olhar ao longo da superfície da encosta. O condutor vai travando com o motor, controlando a descida à medida que vamos abrandando, rolando e ziguezagueando de posto de controlo militar em posto de controlo militar, como pequenas esferas de metal que vão encalhando e libertando-se ao sabor dos acidentes do terreno.

À entrada do vale de Bekaa passamos por Zahle e a paisagem muda gradualmente. Essa mudança é gradual mas não é lenta, é relativamente rápida e coincide com a sensação de que o chão oferece mais resistência, de que o movimento fica mais difícil, mais pedregoso, com mais atrito e isto de algum modo traduz-se em tudo o que me rodeia. Mesmo no centro da estrada, parece haver um calor que derrete ligeiramente o asfalto, e transforma o corredor negro do caminho num estranho rio cuja corrente nos arrasta para um lugar muito longe de mim próprio. A consistência natural do terreno expande-se nas construções dos homens e na substância humana e inumana das coisas. Fica tudo mais concreto ao mesmo tempo que mais vago e fugidio. Não é que as leis da física sejam outras naquele lugar mas a gravidade, o poder que a terra tem de me agarrar a si, assume outras qualidades. Parece-me tudo muito mais espesso, intolerável e atraente, à medida que entramos mais profundamente no vale de Becaa. Invade-me a sensação de estar separado de mim como se eu fosse dois eus em simultâneo, e esta sensação deriva numa dispersão da minha atenção. Olho em todas as direções, quero ver tudo, tudo me impressiona, tudo me excita e tudo se inscreve. Sou invadido por forças de dispersão e a esta dispersão do meu pensamento parece corresponder a dispersão do meu corpo. A dispersão do meu corpo na paisagem que vejo passar pela janela e o temor e a alegria que isso traz. A dispersão do meu pensamento é indicada pelo que vejo lá fora, pelo que me é exterior e flui através do meu interior. Exterior e interior formam um fluxo de energia perfeito em que as correspondências entre o que vejo e o que sinto se traduzem mutuamente sem princípio nem fim. Este instante é eterno. E esta sensação parece expandir-se na lógica daquilo que se dispõe à minha volta. Na sua estrutura interna, as cidades, parecem aglomerados concentrados de dispersão e aleatoriedade como uma estrutura rizomática aparentemente caótica mas em perfeito funcionamento. Dispersamente, as pessoas movimentam-se neste espaço urbano, andam em pequenos grupos, aparentemente sem um sentido normativo dos seus limites. É o contrário do espaço regulado do norte da Europa onde é impossível imaginar uma bolsa habitável fora do território regulado pelo sistema. O sistema está na cabeça e no corpo de todos e por isso já ninguém consegue imaginar esse possível espaço, essa ínfima utopia. O sistema coloniza todas as ações, todas as palavras e é a partir da mente de cada um que controla o colectivo. É como um cérebro colectivo que insistentemente diz a si próprio que não tem zonas de sombra, que tudo em si é auto-consciente, funcional e automático. Um cérebro máquina. Um sistema operativo. Será que no norte da Europa é o sistema que está para o colectivo ou o colectivo para o sistema? O sistema está no interior de cada um, não é um agente exterior que pode ser ativado, desativado ou mesmo ignorado. Ele está potencialmente inscrito desde o primeiro instante de vida, ele é inscrito individualmente para funcionar colectivamente e por isso é que é interno ou mesmo interior, ligado ao sistema nervoso de cada um e inseparável do seu sistema de crenças. Cada um tem uma profunda necessidade de sistema porque é assim que sistematiza tudo na sua própria vida e todos reclamam por ele. Todos reclamam por um lugar no seu seio, por uma posição que lhe permita replicá-lo e passa-lo à próxima geração. O gene egoísta do sistema é introduzido no corpo humano como um vírus num hospedeiro de laboratório. Tudo para a sua reprodução até ao fim dos tempos. Ele vai mobilizar tudo até ao infinito, até ao dia em que a Natureza extinguir o ser humano na onda colossal da sexta extinção da vida no planeta.
Em Becaa é muito diferente, existem vários níveis de regulação. Existe o que é regulado pelo livre arbítrio dos seres humanos, as interações mais mundanas e banais. Existe o que é regulado pela natureza exterior aos homens e que está em interação com o outro nível de regulação que é o das armas porque só a destruição da guerra tem o poder de transformar a paisagem a uma escala comparável à da Natureza. Em Becaa as forças que animam as relações humanas e que insuflam de vida o seu olhar fluem ao sabor dos humores que de algum modo traduzem as transições abruptas das superfícies que nos rodeiam. O espaço público está assente nestas texturas, está assente na sua capacidade de organizar o seu próprio caos e de se reconfigurar sempre que se reorganiza. Os seus limites são os limites visíveis da paisagem e são esses, aparentemente, os limites dos movimentos dos que habitam este lugar. Não existem convenções que limitem o acesso a nenhum espaço visível. Claro que existem paredes, vedações e armas mas essas barreiras parecem negociáveis. Elas desenham geografias permeáveis, definem territórios que podemos atravessar. A estrada e o passeio são a mesma coisa. Não existe um espaço definido para os carros e outro para as pessoas e a visão do modo como todos se movimentam faz-me pensar que estamos ancorados em dimensões distintas. As minhas fronteiras são as do meu pudor e o pudor dos que me rodeiam é revestido de um carácter que eu muitas vezes não compreendo.
Tudo é aparentemente aberto mas essa abertura tem algo de ora sufocante ora libertador. Os homens sempre à frente seguidos por grupos de mulheres de véu que os seguem como figuras enigmáticas e esvoaçantes agindo como se fossem invisíveis. A forma como o lixo se acumula dispersamente à beira da estrada e nos descampados, parecendo afirmar a forma como o tempo passa violentamente depressa sobre o mundo e em particular sobre este lugar. A forma aparentemente abandonada como os vendedores ambulantes dispõem os seus produtos à beira da estrada para atrair os potenciais compradores que passam para dentro e para fora do vale, parece dizer o quanto aqueles objetos afinal não têm lugar.
Prédios destruídos pela guerra, carcaças na paisagem que resistem erguidas para nos fazer lembrar que o mundo é mesmo o lugar mais estranho que existe. Casas demolidas por máquinas gigantes que ficaram abandonadas ali mesmo. As ruínas do futuro. Á beira da estrada, vejo uma enorme retroescavadora deixada no meio dos escombros de um prédio metade demolido, metade de pé. A malha de ferro que reforça o betão transborda na nossa direção como um intrincado de veias histéricas que ao longe mais parece um gigantesco desenho em suspenso na paisagem. É uma estrutura entrópica apoiada na brutalidade material dos escombros e ao mesmo tempo suspensa numa maldição que transcende a presença dos homens e o fervilhar da vida que se desenrola por caminhos bifurcados, complicados, torcidos mas que de repente explodem no espaço quando as mesquitas em uníssono subitamente emitem cânticos que expandem o céu e a terra toda à minha volta como o efeito de uma droga que liberta de constrangimentos a minha percepção das coisas. Que visão tão distante mesmo quando lá estou. O que está perto é o que está longe, e este fluxo de contradições alimenta a excitação do meu cérebro que vai produzindo um ténue fio de adrenalina que se estende atrás de mim ao longo do caminho como uma espécie de cordão umbilical ligado a uma essência primordial que ficou algures para trás e que, de muito longe, me diz que o meu lugar é sempre, e estranhamente, onde estou. É um estranhamento que me percorre por fora e por dentro ao mesmo tempo que me atravessa na certeza de que o espírito da destruição, que se manifesta nas ruínas da guerra dispersas dos montes até ao vale, é uma maldição que teima em não esmorecer e interage com os homens de formas sempre renovadas.

Estou contraditoriamente feliz porque me sinto vivo e num excitante desconforto. Não sei bem nem onde, nem como estou. Digo-me que estou bem. As perguntas repetem-se dentro da minha cabeça sem uma insistência constrangedora e eu continuo a olhar para a paisagem que as várias janelas me dão a ver, para as pessoas à minha volta e para como se dão, como se olham, como se tocam. É tudo muito familiar na verdade. Olho para o desenho da estrada que os veículos reforçam e desgastam a cada passagem. Olho para o chão repisado do interior da carrinha em movimento e vejo os meus pés bem assentes naquele chão de madeira trepidante.






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Incoherent Geography
Europe Europe, 2014
Daniel Barroca


We drive up the mountain, the engine at full speed. The road is filled with twists and turns. The smoke from the other cars is unbearable. The air is rather polluted. Along the route, we find stalled cars and others absurdly driving in the wrong direction. The passage through the top is brief. It seems uninhabited. There’s no time to understand its connection to the sky, which is one of the most fascinating things up in the mountains - that there are places where you can feel the atmospheric pressure as it exerts its force on the earth, or opens an escape vent, a tunnel of space within space that allows what’s locked inside our brain to expand immeasurably in the infinite towards a void which is everything and therefore is also nothing. It’s not worth dwelling on the evidence of all that is nothing and vice versa. The physical experience of the mountain implies loss of air. It involves entering a territory where the body is compressed and the ribcage loses its interior space.
Losing this space makes us short of breath, and places the body in a subtle vertigo. It is an inner limit for which the best exterior image would be that of a steep slope from which we can plummet and disappear. The speed of thought is the same as the van’s movement. We proceed along the road, following a route that traverses a landscape of more or less scattered, more or less cohesive objects. When we begin our descent, the valleys formed by the mountains, with their different shades of brown and differences in scale, cause me a subtle vertiginous attraction, as I slide my gaze across the valley slope. The driver uses the engine to brake, controlling our descent as we slow down, rolling and zigzagging from one military checkpoint to the next - like a small metal ball that has run aground and is liberated in function of the lie of the land.



At the entrance to the Bekaa Valley, we pass through Zahle and the landscape gradually begins to change. It’s a gradual but fairly rapid transformation, as we feel that the ground offers more resistance, and our movement becomes more difficult, rockier, with more friction. This somehow translates into everything around me. Even in the middle of the road, there seems to be a heat that slightly melts the asphalt. It transforms the road’s black corridor into a strange river, whose current drags us towards somewhere that’s far from me. The natural consistency of the terrain expands via the manmade constructions and the human and inhuman substance of the surrounding objects. Everything is more concrete and yet at the same time more vague and elusive. It’s not that the laws of physics work differently here, but gravity, the power of the earth to pin me down, assumes other qualities. Everything seems to be much thicker, intolerable and clingy, as we penetrate deeper inside the Becaa valley. I’m filled with the sensation of being separated from myself, as if I were simultaneously two beings. This feeling derives from the fact that my gaze is diverted. I look in every direction. I want to see everything. Everything amazes and excites me and seems to make sense. I'm invaded by forces of dispersion and this very dispersion of my thoughts seems to correspond to the dispersion of my body. The dispersion of my body across the fleeting landscape that I observe through the window, combined by the fear and the joy that this brings. The dispersion of my thoughts is indicated by what I see outside, what lies beyond me and flows through me. The exterior and interior create a flow of perfect energy, in which the correspondences between what I see and what I feel, merge into one, without beginning or end. This moment is eternal. And this sensation seems to expand via the logic of everything around me. Cities here, in their internal structure, look like concentrated clusters of dispersion and randomness, like a rhizomatic structure that is seemingly chaotic but operates perfectly. In a dispersed manner, people move around inside this urban space. They walk in small groups, seemingly without any normative sense of their boundaries. It’s the opposite of the regulated space of Northern Europe, where it’s impossible to imagine a habitable zone beyond the territory that is regulated by the system. The system exists in everyone’s mind and body and therefore no one can imagine this space - this tiny utopia. The system colonizes all actions, all words and controls the collective via each person’s mind. It's like a collective brain that repeatedly tells itself that it has no grey areas, that everything within it is self-conscious, functional and automatic. A machine brain. An operating system. In Northern Europe, does the system exist for the collective or does the collective exist for the system? The system exists inside each of us. It isn’t an external agent that can be switched on or off or even ignored. It’s potentially inscribed within us from the moment we are born. It’s individually inscribed within us in order to function collectively and that’s why it’s internal or even interior. It’s connected to each person’s nervous system and is inseparable from his or her belief system. Each of us has a deep need for the system because that’s how we systematise everything in our lives and everyone clamours for it. We all claim a place within the system, a position that will enable us to replicate it and pass it down to the next generation. The self-centred gene of the system is introduced into the human body like a virus in a laboratory host. Everything to ensure its reproduction until the end of time. It will mobilize everything until infinity, or at least until the day when Nature extinguishes human beings in the colossal wave of the sixth extinction of life on earth.

In Beqaa, everything is quite different, there are various levels of regulation. We encounter that which is regulated by the free will of human beings, the most mundane and banal interactions. There is that which is regulated by Nature beyond mankind and which interacts with another level of regulation – that of weapons. Because only wartime destruction has the power to transform the landscape at a scale comparable to Nature. In Beqaa, the forces that drive human relations and which instil their gaze with life flow in function of their moods, that somehow translate the abrupt transitions of the surfaces around us. The public space is based on these textures. It is based on their ability to organize its own chaos and reconfigure itself whenever it reorganizes itself. The boundaries of the public space are the boundaries of the visible landscape and these are apparently the limits of the movements of the people who inhabit it. There are no conventions that restrict access to any visible space. Of course there are walls, fences and guns, but these barriers all seem to be negotiable. They trace permeable geographies. They define territories that we can cross. The road and the pavement are the same thing. There is no separate space allocated for cars and another for people. The vision of how everyone moves makes me think that we are anchored in different dimensions. My boundaries are those formed by my own discretion, whereas I often don’t understand the nature of the discretion of those around me.

Everything is apparently open but that openness is sometimes suffocating, sometimes liberating. Men stride ahead, followed by groups of veiled women, who follow them like enigmatic and fluttering figures, acting as if they were invisible. The way in which waste accumulates scattered around the roadside and in the open spaces, seems to affirm the manner in which time passes by violently and quickly over the world and in particular over this place. The seemingly abandoned manner in which street vendors display their wares on the roadside to attract potential buyers who pass into and out of the valley, seems to demonstrate that these objects ultimately have no place.
Buildings destroyed by war, empty carcasses strewn around the landscape and which resist standing to remind us that the world is the strangest place that exists. Houses that have been demolished by giant machines and which lie abandoned. The ruins of the future. By the roadside, I see a huge mechanical digger amidst the rubble of a half demolished building. The iron framework used to reinforce the concrete flows toward us like an intricate lacework of hysterical veins. In the distance it looks more like a giant drawing suspended over the landscape. It’s an entropic structure supported upon the material brutality of the rubble and at the same time is suspended on a curse that transcends human presence. Bustling life flows through the complex, bifurcated, twisted passageways that suddenly explode into space, when the mosques emit chants in unison that expand the sky and earth around me, like the effect of a drug that completely liberates my perception of the world. What a distant vision, even when I'm there. What lies close to me is also far away. And this flow of contradictions feeds the excitement of my brain, producing a tenuous stream of adrenaline which stretches behind me, along the path. It’s like an umbilical cord attached to a primordial essence, that was left somewhere behind me and which, from far away, tells me that my place is always, and strangely, where I am now. It's a strange sensation that simultaneously runs inside and outside me, at the same time that it crosses through me in the certainty that the spirit of destruction, which is manifested in the ruins of war, scattered from the hills to the valley, is a curse that insists on persisting and interacts with men in constantly renewed manners.

I'm contradictorily happy because I feel alive, with an exciting sense of discomfort. I don’t know how or where, or how I am. I tell myself me that I'm fine. The questions are repeated inside my head without an embarrassing insistence and I keep looking at the landscape that I can see through the multiple windows, to the people around me and the manner in which they get along, how they observe, how they touch each other. It's all actually very familiar. I look at the shape of the road that the vehicles reinforce and wear away with each passage. I look at the treaded floor of the interior of the moving van and I see that my feet are firmly affixed to the bumpy wooden floor.



Translation: Martin Dale